
“Becos de Goiás
Beco da minha terra… Amo tua paisagem triste, ausente e suja. Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa. Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio. E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia, e semeia polmes dourados no teu lixo podre, calçando de ouro a sandália velha, jogada no teu monturo.
Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, descendo de quintais escusos sem pressa, e se sumindo depressa na brecha de um velho cano. Amo a avenca delicada que renasce na frincha de teus muros empenados e a plantinha desvalida, de caule mole que se defende, viceja e floresce no agasalho de tua sombra úmida e calada.
(…)
Conto a estória dos becos, dos becos da minha terra, suspeitos… mal-afamados onde família de conceito não passava. (…) Becos de mulher perdida. Becos de mulheres da vida. Renegadas, confinadas na sombra triste do beco. Quarto de porta e janela. Prostituta anemiada, solitária, hética, engalicada, tossindo, escarrando sangue na umidade suja do beco.
Becos mal-assombrados. Becos de assombração… Altas horas, mortas horas… Capitão-mor – alma penada, terror dos soldados, castigado nas armas. Capitão-mor, alma penada, num cavalo ferrado, chispando fogo, descendo e subindo o beco, comandando o quadrado – feixe de varas… Arrastando espada, tinindo esporas (…)”
Trecho de “Becos de Goiás” (p.92), da magnífica poeta e contista Cora Coralina (1889-1985), um dos poemas de seu livro mais famoso, o”Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, que tive o prazer de adquirir no museu a ela dedicado.
Terra de um dos maiores nomes da literatura brasileira, a poeta Cora Coralina, de saraus e serenatas ao luar, das esculturas barrocas de Veiga Valle, de um arrebatador mostruário de arquitetura barroca, bandeirista e eclética (com mais de 90% de sua arquitetura oitocentista preservada), do compositor sacro Basílio Martins Braga Serradourada, da Procissão do Fogaréu com os misteriosos Farricocos e de uma atmosfera bucólica, com suas ruas de pedras onde as pessoas passeiam sem pressa à noite, em meio a lojas de artesanato local e souvenires, das belas pontes sobre o Rio Vermelho: tudo em Vila Boa de Goiás leva a crer que o tempo parou no local – no bom sentido dessa observação. A antiga capital do Estado de Goiás – Goiânia se tornou a capital em 1937 – consiste em um dos mais ricos patrimônios arquitetônicos e culturais do Brasil.
Não por acaso, o Centro Histórico de Goiás, cidade que é herdeira da expansão colonial e da riqueza gerada pela exploração do ouro, testemunha da saga da ocupação e colonização do Centro-Oeste pelos bandeirantes oriundos de São Paulo, foi tombado como Patrimônio Mundial Cultural pela UNESCO em 2001. O seu traçado urbano está relacionado à história dos bandeirantes que exploraram o interior do território brasileiro, exemplificando o desenvolvimento orgânico de uma cidade mineradora do século XVIII adaptada à vegetação de cerrado dos morros e da Serra Dourada. A cidade é a materialização de como os exploradores do território, em uma situação isolada, adaptaram os modelos de planejamento e construção vigentes na metrópole portuguesa às realidades da região tropical. É a personificação daquilo que o grande Gilberto Freyre enfatizava sobre o “Novo Mundo nos Trópicos”, o mundo que o português criou.
A seguir imagens do artesanato de Goiás, onde é possível encontrar agradáveis surpresas, como o Espaço Criativo, em um atelier ao ar livre. Berrantes, muito souvenir com os Farricocos da Procissão do Fogaréu e casas com decorações criativas, algo entre o Naif e o colonial, coloridas, nas quais a lembrança à poetisa Cora Coralina, um dos mais ilustres nativos de Goiás, é constante:
A expansão para o Centro-Oeste do Brasil nos séculos XVII e XVII acarretou no surgimento de cerca de 500 vilas, arraiais e povoados e no primeiro núcleo urbano oficialmente reconhecido a oeste da linha de demarcação do Tratado de Tordesilhas (celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela), que definiu, originalmente, as fronteiras da colônia portuguesa. No local onde vivia a tribo dos índios Goyases (Goiás), em 1683, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, chegou até o Rio das Mortes, que posteriormente designou de Rio Vermelho. A cidade começou como um arraial e foi elevada à categoria de vila, com o nome de Vila Boa de Goiás, em 1739. Goiás se tornou capital da Província em 1749.

Chegamos no dia 17 de abril, Quarta-Feira Santa, quando ocorreu a Procissão do Fogaréu, na hora do almoço, à cidade, situada a quase cinco horas de distância de Brasília, o que significa que saímos de casa bem cedo, por volta das 6h da manhã, a fim de que pudéssemos aproveitar o dia, já na chegada, ao máximo. O trajeto de carro de Brasília até Goiás, com a vista da vegetação do bioma do cerrado, com suas características árvores retorcidas, típicas aqui no Distrito Federal e no Estado de Goiás, compensa as longas horas na estrada. Aliás, gostamos muito de intervalos para um café e cigarro ao longo do caminho para um rápido descanso e para admirar com calma as paisagens ao nosso redor.
Assim estava a paisagem no caminho, na altura de Abadiânia, quando paramos para um café nessa loja de conveniência na estrada. Um fog maravilhoso, dia de nevoeiro, do jeito que eu tanto adoro!
Hotel Fazenda Manduzanzan: um espetáculo
A cidade tem hotéis e pousadas simples e não é tão turística quanto Pirenópolis ou as cidades históricas de Minas Gerais. Se você quer uma opção de hospedagem com infraestrutura especial, tranquilidade, clima de agroturismo e longe do Centro Histórico recomendo uma reserva no hotel fazenda que escolhi após muito pesquisar (ainda em dezembro do ano passado): o Manduzanzan, distante a oito quilômetros de Goiás. Creio que seja a melhor opção da região. Fomos recebidos com um almoço que era um primor, o melhor da culinária caseira goiana.
Ficamos em um dos muitos chalés oferecidos. Os quartos são confortáveis, arejados e limpos (o nosso tinha uma cama de solteiro além da de casal), com um banheiro espaçoso. Tem duas piscinas (uma com borda infinita) e hidromassagem, uma revigorante bica d’água, campo de futebol, área de recreação infantil (é um ótimo hotel para quem viaja com crianças), sala de jogos, bar, vacas pastando (com a opção de tirar e tomar o leite fresco delas pela manhã, caso você acorde bem cedo, por volta das 6h), uma lagoa com patos, cavalos para montar e fica a 800 metros da Cachoeira Andorinhas, a mais famosa da cidade e arredores (vi que em uma placa no início da trilha que a entrada na cachoeira custa R$ 10,00 ou 20,00, mas é gratuita para os hóspedes do Manduzanzan).
Todas as refeições são excelentes, do farto café da manhã (incluído na diária), no melhor estilo roceiro, aos almoços e jantares com pratos típicos que servem duas pessoas, como a galinhada, uma mesa de doces como goiabada, doce de leite e bananada com queijo artesanal, produzido no hotel, e licores e cachaças caseiros com frutas do cerrado. Precisa mais? Não: foram cinco dias de deleite pleno. É o tipo de opção de hospedagem que eu, urbana assumida, a típica “menina criada em apartamento”, fico encantada ao desfrutar. Um hotel fazenda com o melhor da acolhedora vida rural.
A diária não é barata, mas, como disse, é para quem procura uma hospedagem especial. É possível viajar para Goiás apenas para relaxar de uma rotina estressante, aproveitando o paradisíaco cenário do Manduzanzan, caso o viajante não tenha interesse (ou tempo) para conhecer Vila Boa de Goiás. O hotel é bom para quem viaja de carro, pois entre os oito quilômetros (de 15 a 20 minutos) que separam a cidade do Manduzanzan o trajeto é percorrido em uma estradinha de terra, chamada Estrada do Monjolinho, que fica ao lado da Igreja Santa Bárbara e do cemitério de Goiás. O percurso é bem sinalizado.
Eu adorei a experiência e se você se interessou os telefones para reservas são (62) 3371-4801, (62) 99982-3373 e o WhatsApp (62) 99611-3373. Quem irá atender provavelmente será a gentilíssima Ana, proprietária do Manduzanzan, que mora em uma bela casa na área do hotel fazenda com seu esposo. Não estranhe se ela demorar a atender ou a responder no WhatsApp, já que a conexão é péssima em toda a região de Goiás – é um aspecto negativo da cidade e arredores. O hotel disponibiliza WiFi gratuito aos hóspedes, o que torna a experiência com internet e ligações telefônicas um pouco menos frustrante.
Veja as fotos do Manduzanzan, inclusive com o café da manhã especial que eles prepararam só para nós na manhã de segunda-feira, já que ficamos a sós no hotel, pois todos os outros hóspedes haviam feito check out no domingo:
Arquitetura singular
Goiás é pequena e já no primeiro dia foi possível visitar em detalhes as principais atrações, que consistem em igrejas coloniais diversas, muitas datadas do século XVIII, exemplares do Barroco ou da arquitetura oitocentista colonial, e outras recentes, do século XX, praças (largos) e chafarizes, além do casario colonial com lindas fachadas e janelas ao melhor estilo de uma cidade brasileira do período colonial. Se você, assim como eu, gosta dessa arquitetura, atrelada à era colonial portuguesa, ao Brasil Profundo, interiorano, à natureza estonteante, praticamente intocada, com morros e algumas cachoeiras e a um clima bucólico (a exemplo de Pirenópolis, também em Goiás, e das cidades históricas de Minas Gerais), então Vila Boa de Goiás é o seu lugar. Eu só lamentei e senti raiva de mim mesma por não ter conhecido essa cidade antes!
Entre todas as igrejas, minha preferida é a Nossa Senhora do Rosário, já que sou fã de arquitetura gótica em todas as suas variações, incluindo o Gothic Revival. A atual igreja, uma construção neogótica da década de 1920, com uma única torre centralizada, pertencente à Ordem Dominicana, substituiu a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que datava de 1734 e era uma pequena capela em estilo colonial. Apresenta tons acinzentados, predominantes nas obras dos dominicanos. O interior da Igreja do Rosário apresenta um conjunto de afrescos elaborados pelo padre italiano Nazareno Confaloni, considerado o iniciador da arte moderna em Goiás.
A Casa de Câmara e Cadeia (atual Museu das Bandeiras) conta a história da presença portuguesa em Goiás e do desbravamento da região pelos bandeirantes. O prédio é um dos melhores exemplos da arquitetura oficial civil portuguesa no Brasil, o mais significativo do Centro-Oeste e funcionou como prisão até 1950. A construção do prédio data de 1766, fora realizada segundo o projeto da Coroa Portuguesa e sofreu poucas alterações, preservando ainda as mesmas características iniciais apresentadas nos desenhos existentes no Arquivo Ultramarino de Lisboa, em Portugal.
O Chafariz de Cauda, próximo ao Museu das Bandeiras, é belíssimo e foi construído em 1778, apresentando espaço central para bicas, além de dois tanques na parte externa destinado aos animais, e de uma grade de proteção frontal que cria um pátio interno com bancos. Em contraste, o charmoso Coreto, construído em 1923 e que abriga uma deliciosa sorveteria com sabores de frutas do cerrado (imperdível), é parada obrigatória para quem visita Goiás.
Próximo ao Coreto, construção eclética de 1923 que abriga uma tradicional e saborosa sorveteria, está a Igreja de Sant’Anna, Catedral da Cidade de Goiás, cuja construção foi iniciada em 1743. Após várias demolições e reconstruções, recebeu, em 1929, um projeto elaborado pelo arquiteto carioca Gatão Bahiana que, por suas dimensões, não chegou a ser concluído. Devolvida ao uso público, parcialmente concluída, em 1967, somente nos finais do século XX foi finalmente considerada completa a obra de recuperação, recebendo acabamento e vitrais nas janelas, com base em projeto elaborado pela equipe do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
E eis o charmoso Coreto, situado na praça da cidade, que data de 1923, e veio a substituir outro de menor dimensão. Apresenta elementos da arquitetura eclética, própria das edificações construídas na cidade no mesmo período:
Ainda acerca das igrejas, simpatizei particularmente com a São Francisco de Paula, para onde os Farricocos se dirigiram no decorrer da Procissão do Fogaréu. Construída em 1761, apresenta características gerais dos edifícios religiosos goianos do século XVIII. Sua fachada é composta de um corpo central com as janelas do coro emolduradas em massa e parapeito entalado de balaústre com madeira recortada. É uma das únicas igrejas de Goiás que apresenta pintura no teto.
Enfim, há várias igrejas, inclusive na zona rural e no povoado de Areias, nas proximidades do município. Eu não cheguei a visitar todas, mas como pretendo decididamente retornar a Goiás, dedicarei um tour pelos templos mais afastados em uma próxima ocasião.
Por fim, indico a visita ao Mercado Municipal, que além de lindo sedia restaurantes e uma série de lojas com artesanato local, doces, quitandas e licores e cachaças artesanais, que são sinônimo desta cidade histórica (os estabelecimentos de dar água na boca serão devidamente abordados em um próximo post sobre a divina gastronomia local, com muitas dicas).
Cora Coralina e Arte Sacra
A rica tradição cultural da Cidade de Goiás inclui não somente a arquitetura e as celebrações populares, como as procissões, mas também a música sacra, as artes plásticas e a poesia. É essencial conhecer o Museu Casa de Cora Coralina, em uma residência colonial de 1770, onde viveu a poeta e contista Cora (Coração) Coralina (Vermelho), pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985). A casa à beira de uma das pontes sobre o Rio Vermelho deixou de apresentar uso residencial com a morte da poetisa, que fora sua última proprietária e moradora – antes dela teve vários moradores, como o Capitão-Mor da Coroa Portuguesa, falecido em 1804, e o Sargento-Mor, João José do Couto Guimarães, trisavô de Cora Coralina. Na verdade, ela retornou sozinha à residência e sua amada terra natal em 1956, após ter passado 45 anos em cidades de São Paulo. Cora participou da Revolução Constitucionalista de 1932, se alistando como enfermeira e doando seu anel de casamento e joias ao governo de São Paulo em apoio às forças militares. Casada desde 1911 com o advogado Cantídio Tolentino Figueiredo Bretas, então chefe da polícia de Goiás, com quem havia fixado residência no Estado de São Paulo, enviuvou em 1934 e passou a alugar quartos para estudantes de modo a sobreviver, tendo posteriormente trabalhado como vendedora de livros.
No museu dedicado à escritora, a visita guiada cobre cada aspecto de sua biografia e obra, descoberta tardiamente pelo escritor Carlos Drummond de Andrade, quem a projetou para a fama literária. Obra literária de uma mulher de costumes simples, uma das personalidades mais ilustres da cidade, com vasta sabedoria e talentosa doceira, inspirada nos becos de Goiás, nos doces típicos goianos e na própria residência, responsável por uma obra rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro e alheia a modismos literários. Generosa, ela queria compartilhar as belezas da região onde nasceu. O museu reúne uma coleção doada pela família de seus objetos pessoais, manuscritos, livros, móveis, utensílios, fotos e correspondência etc. Após os 127 anos de seu nascimento, Cora Coralina continua a ocupar uma posição de destaque na Literatura brasileira e a atrair novos leitores e pesquisadores acerca de sua obra como contista e poeta. Amante da língua portuguesa, ela considerava o dicionário seu aliado e costumava dizer que “para aqueles que, como eu, só tiveram acesso ao Ensino Primário, o dicionário é meu livro de amor”.
Filha do desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto e de Jacintha Luiz do Couto Brandão, Cora estudou apenas até a terceira série primária e já aos 14 anos de idade iniciou sua atividade literária, publicando seus primeiros contos no jornal local. Nonagenária, teve tempo de assistir à própria consagração. Foi premiada em diversas ocasiões, com destaque para o título de Honra ao Mérito do Trabalho, da Presidência da República, em 1984, e o Troféu Juca Pato (Intelectual do Ano), concedido pelo jornal Folha de São Paulo, naquele mesmo ano.
Não é permitido tirar fotos do interior do museu de Cora, à exceção do jardim de sua antiga morada: