
Em maio de 2018, eu e meu marido fomos para Pirenópolis, a 2 horas de Brasília. Adoro Pirenópolis e sempre retorno, sendo que no ano passado prestigiei as tradicionais celebrações da Festa do Divino – e em especial as Cavalhadas. O bom é que o Estado do Goiás, com o bioma do cerrado e cidades históricas de influência colonial portuguesa do século XVIII, como Pirenópolis e Goiás Velho, tem a oferecer tradição na medida certa aos moradores de Brasília que, como eu, eventualmente se cansam de sua modernidade.
Em Pirenópolis, não é exagero dizer que a Festa do Divino e as Cavalhadas são as celebrações populares mais aguardadas no ano entre os moradores: envolvem toda a cidade, que fica abarrotada de turistas. As Cavalhadas – folguedo (festa popular) do folclore de Portugal e de boa parte do Brasil – consistem em uma teatralização, ao ar livre, que se prorroga por três dias e é composta por músicas, torneios à moda medieval, diálogos e coreografias feitas com cavalos. A celebração foi trazida de Portugal pelos padres jesuítas, sendo que no Brasil as Cavalhadas representam as batalhas travadas entre cavaleiros cristãos (vestidos de azul) e muçulmanos (os mouros, de vermelho). Nas Cavalhadas brasileiras, o famoso imperador Carlos Magno, “Rei dos Francos”, e o Catolicismo são enaltecidos pelo folclore regional, sendo as Cavalhadas representativas do folclore das Regiões Centro-Oeste (Estados do Mato Grosso e do Goiás, onde Brasília está localizada), Nordeste, Sudeste (no interior dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro) e Sul (no interior do Paraná e do Rio Grande do Sul, Estado onde nasci).
A Cavalhada no Brasil tem o enredo baseado em “Os Doze Pares da França”, uma coletânea de histórias fantásticas sobre Carlos Magno, que integra o ciclo literário da Idade Média conhecido como Carolíngio. Os “doze pares” se referem à tropa de elite pessoal do rei Carlos Magno, formada por doze cavaleiros leais ao rei, liderados por Rolando, possivelmente sobrinho de Carlos Magno. Os Doze pares também podem ser vistos como personagens de ficção em outras obras do Ciclo Carolíngio, como “A Canção de Rolando”, uma canção de gesta francesa do século XII que descreve de maneira fantasiosa a destruição da retaguarda do exército franco na Batalha de Roncesvales. No poema, Rolando e os outros pares são traídos por um nobre franco que combina um ataque junto ao rei muçulmano de Zaragoza. A partir de “A Canção de Rolando” surgiram muitas outras obras literárias medievais que apresentavam Carlos Magno, Rolando e os pares como campeões da luta do cristianismo contra o islamismo.
Reconhecida oficialmente como Patrimônio Cultural Brasileiro, a Cavalhada de Pirenópolis, que acontece durante a Festa do Divino do Espírito Santo, está entre as melhores do País e é encenada todos os anos, desde o século XVIII (há registros de Cavalhadas no Brasil, porém, desde o século XVII). Além da influência dos Jesuítas, a região de Pirenópolis foi influenciada principalmente por colonos que vieram do norte de Portugal, onde a Cavalhada teve início nos torneios medievais, em espetáculos públicos envolvendo temas do período da Reconquista (Portugal e Espanha foram dominados por séculos pelo islamismo e a luta fora empreendida no sentido Norte-Sul, movimento que ficou conhecido com como “A Reconquista”, quando a Igreja Católica retomou seus territórios).
Outra influência na cidade remonta à Catalunha. O nome Pirenópolis (que significa “a Cidade dos Pireneus”) provém da Serra dos Pireneus, que circunda a cidade. Recebeu essa designação porque a região também era habitada por colonos espanhóis – catalães. Como os catalães viam semelhança entre essa região central do Brasil e os Pirenéus da Europa, a cadeia de montanhas situada entre a Espanha e a França, deram então a esta serra o nome de Pirenéus, mas mais tarde, devido à pronúncia da língua portuguesa no Brasil, surgiu a grafia sem acento.
Na Espanha, a história de Carlos Magno tornou-se literatura popular, influenciada pelas canções de gesta francesas, difundidas pelos jograis que acompanhavam as comitivas dos cavaleiros em romaria aos lugares santos, como Santiago de Compostela. Da Espanha, a popularidade dos contos sobre Carlos Magno, Rolando e os Doze Pares passou a Portugal, sendo então trazidos ao Brasil, onde tiveram ampla aceitação popular como livro ou folheto de cordel. Pirenópolis, com seu folclore, personifica aquele chamado “Brasil Profundo”, luso-brasileiro, interiorano, longe do litoral, profundamente Católico e com um folclore influenciado não apenas por Portugal, mas também por épicos medievais como as canções de gesta da Literatura Medieval (e o Ciclo Carolíngio), que profundamente influenciaram, por exemplo, a popularíssima Literatura de Cordel, um dos símbolos do Nordeste do Brasil.
De certa forma, ocorre com Carlos Magno a transformação de uma figura histórica em herói mítico – reverberando até os dias de hoje, em uma das mais importantes festas populares do Brasil. No imaginário popular, Carlos Magno acabou lutando contra infiéis na Espanha. O povo daqui admira Carlos Magno enquanto símbolo de monarca guerreiro, que expandiu o Reino Franco através da conversão de pagãos (como os Saxões) e muçulmanos.
Na encenação, que tem início na igreja de Pirenópolis e se encerra no “Cavalhódromo” da cidade, 12 cristãos (fantasiosamente comandados por Carlos Magno no espetáculo) vencem 12 muçulmanos, que ao final são convertidos ao cristianismo. Os cavaleiros seguem em fila hierárquica pela cidade, rezam e dançam a Catira – dança do folclore brasileiro de origem híbrida, com influências indígenas, europeias e africanas – ao som de violas, pandeiros e canções.
Nos dias de Cavalhadas, mães, filhas e esposas ajudam a “aprontar” seus cavaleiros. As vestimentas usadas durante as encenações são minuciosamente preparadas por armeiros, costureiras, bordadeiras e floristas. Sobre a calça e a camisa, são colocados vários adereços, como cintos e peças de armadura, além de capas ricamente bordadas com símbolos cristãos (cálices, ostensórios, cruzes, Divinos, coroas) ou mouros (brasões, águias, cartas de baralho, lua e dragão). Dependendo da patente, o cavaleiro usa elmo ou chapéu. As cores predominantes são o vermelho e o dourado para os mouros e o azul e prateado para os cristãos.
No momento de descanso, mascarados alegram a festa e simbolizam o povo, disparando ironias e críticas à elite. Para eles, vale de tudo, menos revelar a identidade que existe por baixo da máscara. Os “Curucucus”, mascarados típicos de Pirenópolis, usam a máscara de boi. Comumente, um corte do tecido chitão é usado para cobrir os cavalos dos mascarados ou até para confeccionar sua roupa, que visa proteger todo seu corpo, finalizando em luvas e botas para a difícil identificação do indivíduo. Outros, que desejam se destacar de forma categórica, vestem roupas de cores distintas, bem trabalhadas em detalhes, chegando a rivalizar com a beleza dos cavaleiros. Esses, quase sempre, adotam as máscaras tradicionais, enfeitando os cavalos com flores e pinturas nos cascos.
As culturas indígena, africana e europeia faziam uso de máscaras, mas as utilizadas nas Cavalhadas de Pirenópolis são de origem dos colonizadores portugueses, influenciadas pela tradição do Careto, personagem mascarado comum na província de Trás-os-Montes e Alto Douro, em locais como Bragança e Lazarim, com raízes nos povos Galaico e Brácaro. É uma tradição pagã que sobreviveu ao cristianismo. Há uma teoria de que os Curucucus, mascarados de Pirenópolis, surgiram para “espantar” os maus espíritos. Outros dizem que os Curucucus surgiram para confrontar a alta classe social, já que apenas os ricos podiam se tornar cavaleiros.
Há mascarados de todos os tipos atualmente, mas as máscaras de boi predominam. O boi não apenas traz, em sua origem, um simbolismo que remonta às culturas primárias, cujos chifres eram representados como totem ou empregados para uso mágico, como também está intimamente associado à vida rural dessa região. O primeiro “carro de boi” chegou ao Estado de Goiás no início do século XIX, proveniente de Minas Gerais, sendo considerado um progresso à época e dando início ao ciclo agropecuário no Goiás. Os vilarejos foram construídos com a força dos animais, principalmente do boi, não só no trabalho dos engenhos, mas no próprio quotidiano da população e nas romarias.
Com o passar do tempo, os cavaleiros mascarados de boi se tornaram uma das principais atrações da Cavalhada de Pirenópolis, criando um clima carnavalesco em pleno Pentecostes. Eles divertem o público pedindo dinheiro, protestando sobre temas políticos (aproveitando que estão anônimos!), fingem (ou não!) estarem bêbados etc etc.
Sensacional! Super recomendo.
Um comentário sobre “Cavalhadas de Pirenópolis – Carlos Magno e o Brasil Profundo”