
Com vestes e capuzes brancos cobrindo seus rostos, eles cantam uma ladainha fúnebre enquanto vagam com suas tochas pelos labirintos da cidade
“Senhor Deus, misericórdia;
Pelas almas dos fiéis e defuntos dessa cidade, misericórdia;
Pelas almas dos que sofreram ao morrer, misericórdia;
Pelas almas dos irmãos que cometeram suicídio, misericórdia;
Senhor Deus, misericórdia”.
Trecho da ladainha fúnebre na Procissão dos Penitentes
O ponto alto das celebrações pela Semana Santa em Goiás é, sem dúvidas, a Procissão do Fogaréu. Porém, entre as muitas procissões realizadas até o domingo de Páscoa, eu estava ansiosa para assistir à Procissão dos Penitentes (também chamada “das Almas”), que inicia por volta das 23h30min, na Quinta-Feira Santa, em frente à Igreja de São Francisco, e termina após a meia-noite no cemitério da cidade. Sim, no cemitério! O cortejo é obrigatório a todos aqueles que, como eu, apreciam arte sepulcral, visitas guiadas a cemitérios e ritos fúnebres em geral, bem como as representações da morte nas artes, na música de função litúrgica e na cultura popular.
O passeio junto aos Penitentes e a moradores de Goiás que anualmente acompanham essa procissão portando velas brancas foi maravilhoso. O que pode soar como terrificante a algumas pessoas para mim foi percebido como um tour noturno pelos principais logradouros de Goiás – as ruas, os becos e a porta das principais igrejas, onde os Penitentes, vestidos de branco e com os rostos cobertos por capuzes semelhantes aos dos Farricocos, param, se ajoelham e pedem misericórdia às almas dos defuntos da cidade, a todos que morreram em decorrência de assassinatos, aos que pereceram vitimados por doenças dolorosas como câncer, aos índios e africanos mortos, às vítimas do Holocausto (Shoah) e de todos os governos ditatoriais pelo mundo. As orações são dirigidas, portanto, não apenas aos moradores de Goiás. Os suicidas, em particular, são constantemente evocados ao longo do trajeto, que dura menos de uma hora, a fim de que suas almas encontrem paz.
Eles cantam uma ladainha fúnebre enquanto vagam com suas tochas pelos labirintos da cidade, totalmente escura como no dia anterior, quando ocorreu a Procissão do Fogaréu. O número de participantes que seguia os Penitentes era consideravelmente menor quando comparado à noite anterior, o que tornou tudo ainda mais especial, “exclusivo” para mim: poucas pessoas os seguiam, entoavam os cantos de misericórdia com devoção, em uma bela noite de lua cheia rumo ao cemitério, onde somente os penitentes podem entrar.
Uma noite para lembrar, quando fiz questão até de me enfeitar a caráter:
Os moradores e poucos turistas que, como eu, participaram da Procissão das Almas ficam do lado de fora do cemitério. Fotos das pessoas que acompanharam a procissão até o cemitério e dos Penitentes entrando no local:
Apenas os penitentes são autorizados a entrar para a última oração da noite à beira dos túmulos. Confesso que fiquei um pouco frustrada nesse momento, pois queria ter entrado (e tentei, conversando com um organizador da procissão, mas ele negou enfático, declarando que só os Penitentes têm o direito de ultrapassar os portões do cemitério). Lá, os Penitentes tiram as vestes e capuzes brancos e, após cerca de meia hora, saem com suas roupas normais. Quando tudo encerrou aproveitei para entrar e conhecer o cemitério antes que os portões fechassem – queria ver se deixaram algum vestígio por lá, mas não encontrei nada, só a paz e o silêncio esperado em um cemitério de uma cidade interiorana após a meia-noite.

A chegada ao cemitério e a Procissão dos Penitentes como um todo é cercada de lendas, o que torna tudo ainda mais fascinante, aliado à beleza plástica incrível desse evento noturno. De acordo com uma das lendas, a exigência de que apenas os Penitentes entrem no cemitério se dá porque eles seriam algumas das almas lembradas na procissão que, ao chegarem à beira dos túmulos, retornariam as suas eternas moradas. Outra lenda está na página 482 de um livro que comprei no Museu de Arte Sacra da cidade. É a obra “Goyaz: de arraial a patrimônio mundial”, de Elder Camargo de Passos, um dos criadores da Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), e publicado pela editora Kelps em 2018 (o livro que traz ricos detalhes sobre toda a História de Goiás):
Aconteceu em Vila Boa. Uma velha beata, de boa reputação, estava à janela, certa noite. Esperava que a temperatura se amenizasse um pouco ou padecia de insônia. Enxergou uma procissão que subia a rua. Cortejo silencioso, roupas brancas, procissão não anunciada pelo vigário, sem aviso de sino. A velha, muito religiosa, esperou que o desfile passasse. E uma pessoa que participava do cortejo, ao passar por ela, apagou a vela, entregando-a à beata para procurar no dia seguinte.
Passada a procissão, a velha se recolheu. No outro dia, lembrou-se da vela. Não tinha visto a fisionomia da pessoa. Aliás, não havia distinguido um rosto sequer. Buscou a vela na gaveta, mas o que encontrou lá foi um osso. Uma canela aterrorizante. Vira a procissão das almas e o jeito agora era rezar para as infelizes.
Goyaz: de arraial a patrimônio mundial (p. 482)
Enquanto caminhava com o grupo, soube que a história da vela virar osso é comentada. Queriam me dar uma vela e me recomendaram para que eu não permitisse que ela fosse apagada, caso contrário a vela se transformaria em osso. Eu não aceitei caminhar com velas, já que estava filmando e fotografando cada detalhe do cortejo 😉 😉
Os penitentes encarnam uma espécie de exército que luta para interceder pelo perdão das almas dos falecidos necessitados de iluminação para rumarem do Purgatório ao Céu. A origem dessa tradição também é ibérica: deriva de uma procissão chamada Endoenças que acontecia em Portugal, na Quinta-feira Santa, desde a Idade Média. O cortejo, aliás, lembra bastante o Ecce Homo realizado em Braga, Portugal, por conta da
matraca que eles portam em Goiás: é um instrumento que produz ruído ao ser rodado sobre um eixo. O Penitente com a matraca também carrega os ramos de uma planta, que não ficou claro para mim se era arruda.
Outras procissões e concerto de Páscoa
Ainda impactada com os espetáculos a céu aberto das noites de quarta e quinta-feira, testemunhamos nos dias seguintes um conjunto de manifestações culturais e religiosas como missas, procissões e um concerto na Igreja do Rosário. Na Sexta-Feira Santa, após uma encenação, às 20h30, com figurantes relembrando o descendimento da cruz (o ato de despregar e tirar Jesus da cruz), no Largo do Chafariz, teve início a Procissão do Senhor Morto, quando o povo e uma comitiva do Governo do Estado de Goiás (o governador Ronaldo Caiado estava à frente, carregando o túmulo com a escultura de Jesus) sai em cortejo levando o corpo de Jesus em meio aos Farricocos, soldados romanos e crianças vestidas de anjo. O Jesus é obra do célebre escultor barroco Veiga Valle (1806-1874), nascido em Pirenópolis e considerado o Aleijadinho de Goiás. Ao final de toda a procissão, que também toma conta das ruas da cidade, desfila, ainda, outra obra prima famosa do artista: a escultura de Nossa Senhora das Dores.
No sábado, às 18h, fui brindada com o concerto de páscoa do grupo Trompetes do Cerrado, no Santuário de Nossa Senhora do Rosário. O excelente grupo, que é a materialização de um projeto de extensão da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, se dedica ao trompete, instrumento muito popular, que remonta aos tempos medievais, bastante usado para anúncios militares, entrada de monarcas, noivas, estando sempre associado à divindade. O repertório apresentado pelo Trompetes do Cerrado abrangeu do erudito ao popular, com uma apresentação que incluiu composições para o instrumento de Benjamin Britten, Herbert Clarke e Antônio Vivaldi (o Allegro do sublime “Concerto para dois Trompetes em Dó Maior”), além de música popular brasileira que privilegia o trompete (foram escolhidos para a ocasião os compositores Gilson Santos, Rogério Borges e Duda, com a “Fantasia Pernambucana” e “Uma Fantasia Brasileira”).
Ao final de tudo, ainda no sábado à noite, quando estávamos jantando no centro da cidade, vimos passar mais uma procissão, quando uma fogueira foi acesa, em alusão ao Cristo Ressuscitado. No domingo houve a Malhação do Judas pela manhã, outra missa e o início da Folia do Divino Espírito Santo, porém não assistimos às atrações de domingo porque optamos por um passeio pela Cachoeira das Andorinhas e pela Serra Dourada, atrativos naturais da região que serão abordados em um próximo post.
Procissão de sábado, com fogueira em referência a Cristo Ressuscitado:
Meus parabéns pela sua cobertura! 👏👏👏 Excelentes fotos, vídeos e textos!
Obrigada!