Procissão do Fogaréu em Goiás

Tradição foi introduzida em Goiás no século XVIII

Visitar o município de Goiás, outrora capital do Estado homônimo, também designada Vila Boa de Goiás (como eles preferem até hoje denominar o município, ao invés do costumeiro nome Goiás Velho), equivale a uma imersão no Brasil Profundo. Ainda mais quando se tem a chance de participar de um dos maiores ícones culturais do Brasil, a Procissão do Fogaréu, encenação da perseguição e captura de Jesus Cristo com figurantes que eu sempre tive o interesse de conhecer e que marca uma das muitas atrações da Semana Santa na cidade.

Ao som de tambores fúnebres, eles carregam tochas pela cidade

É desnecessário dizer que Vila Boa de Goiás está repleta de turistas, ansiosos em prestigiar a Procissão, cuja origem remonta à Idade Média na Europa, sobretudo dos países ibéricos. O que testemunhamos é único em beleza e peculiaridade: à meia-noite da chamada Quarta-Feira de Trevas, no dia 17 de abril de 2019, vimos a repetição de uma tradição de 274 anos, introduzida na antiga capital do Estado de Goiás pelo padre espanhol João Perestrelo de Vasconcelos em 1745, percorrendo as ruas do município por uma hora e meia. Em um trajeto ao som de tambores quase marciais, 40 figurantes, homens residentes de Goiás encapuzados e empunhando tochas (chamados farricocos), simbolizando a caçada dos soldados romanos a Jesus Cristo, saem da Igreja da Boa Morte e, descalços, percorrem as velhas ruas de pedra da antiga vila.

A Procissão do Fogaréu mescla elementos da liturgia católica e da religiosidade popular. A iluminação pública de Goiás é apagada pelos funcionários da Companhia Energética de Goiás (Celg). A cidade é alumiada pelas 40 tochas portadas pelos farricocos e pelos demais archotes distribuídos ao público que acompanha a perseguição a Cristo.

Note a quantidade de gente acompanhando a procissão

Por fim, os farricocos, turistas e moradores de Goiás seguem à Igreja de São Francisco, que representa o Monte das Oliveiras. Um dos farricocos, portando um estandarte que simboliza Jesus Cristo, anuncia a prisão do Salvador ao som dos clarinetes, quando então é feita a última pregação, contando a prisão de Jesus. A multidão acompanha os farricocos de volta à Igreja da Boa Morte, onde a procissão é oficialmente encerrada, com reflexões e orações do bispo da cidade.

Chegada dos Farricocos à Igreja de São Francisco

Fica evidente a atmosfera lúgubre, misteriosa, angustiante e ao mesmo tempo esperançosa pela ressuscitação de Jesus no Domingo de Páscoa. Mesmo que o visitante não seja religioso, é, sim, uma encenação emocionante. Eu me senti emocionada, embora há anos não me considere cristã. Eu me senti emocionada por uma sensação de pertencimento a uma Latinidade que abrange nosso povo sem distinção em sua origem (não importando etnia ou classe social) e por ter o prazer de presenciar uma tradição de séculos que é repetida fidedignamente ano após ano – e que não fica a dever a celebrações similares pelo mundo, a exemplo da que é realizada em Braga, Portugal. Posso dizer seguramente que é uma das manifestações mais belas da cultura popular brasileira.

Origem Ibérica e sem relação com a KKK

A associação dos farricocos com os integrantes do grupo segregacionista Ku Klux Kan, surgido no sul dos Estados Unidos, vem à mente por conta da semelhança dos trajes e chapéus de ambos. Entretanto, um não tem nada a ver com o outro. Os chapéus pontiagudos dos farricocos, católicos, são uma alusão aos galhos das árvores, que crescem apontando para o céu, e à evocação de uma aproximação do penitente ao céu. Já no caso da Ku Klux Kan (que era cristã protestante), o chapéu e a indumentária foram pensados de modo a transmitir temor, intimidação, com o traje remetendo aos fantasmas de soldados confederados mortos durante a Guerra Civil Americana, para passar a ideia de “fantasmas brancos da noite” (white ghosts of the night).

Em um país continental como o Brasil, onde mais da metade da população é católica, não causa surpresa a volumosa quantidade de manifestações religiosas na Semana Santa. Em todas as regiões do Brasil, as celebrações da Semana Santa são marcadas pelas tradições populares e pela fé no Cristo Ressuscitado. A Procissão do fogaréu não é realizada apenas na cidade de Goiás, no Centro-Oeste do Brasil, ocorrendo também em várias cidades das regiões Nordeste e Sudeste: no Maranhão, é realizada nas cidades de Caxias e Bacabal, próxima à capital, São Luís; há a procissão “Penitentes de Laranjeiras”, cidade do Estado de Sergipe, ocorre no interior da Paraíba e nas cidades de Petrópolis e Porciúncula, no Rio de Janeiro. Os farricocos eram famosos nos carnavais de outrora da Bahia e de Pernambuco, por exemplo.

O Farricoco está presente nos souvenires da cidade e em de obras de arte:

Como dito anteriormente, em Goiás o costume foi transplantado por um padre espanhol no século XVIII. Curiosamente, há dois anos me deparei com fotos da Semana Santa em Barcelona, Espanha, no Instagram de uma querida amiga do Sul, Luiza Neitzke, doutora em História da Arte e professora adjunta no Curso de Conservação e Restauro de Bens Culturais Móveis da Universidade de Pelotas. Era uma procissão da Irmandade da Boa Morte, em frente à Igreja Santa Ana, em Barcelona. Os farricocos de lá estavam vestidos de preto ou branco e usavam chapéus em formato de cone idênticos aos de Goiás. Todo o cortejo guarda fortes similaridades com as vestimentas comuns nas celebrações da Semana Santa de Goiás. Pesquisei melhor a respeito e me deparei com farricocos idênticos aos de Goiás em outras localidades da Espanha, como Alcalá de Henares (cidade nos arredores de Madri), Valladolid, Sevilha, Jerez de la Frontera, Alcañiz etc.

Fotos de minha amiga Luiza Neitzke, tiradas em Barcelona, em 2017, na época da Semana Santa de lá:

Em Portugal, a procissão noturna com as mesmas características da goiana também é atração turística famosa em Braga, cidade ao norte de Portugal, onde recebe o nome de Ecce Homo. Entre todas as celebrações de Semana Santa em Portugal, a de Braga é a mais famosa. Por lá, os soldados que perseguem Cristo também são denominados farricocos e representam figuras alegóricas dos antigos penitentes públicos, descalços, vestidos em túnicas negras (“balandraus”) e também com os rostos cobertos por capuzes. No norte de Portugal, as tochas consistem em cestas metálicas com pinhas a arder empunhadas em varas.

No final da Idade Média, o farricoco possuía um caráter de penitência, a começar pelo traje, inspirado no Antigo Testamento e proveniente das antigas procissões de penitência. Em algumas regiões de Portugal e Espanha, o farricoco estava associado a uma punição imposta àqueles que não seguissem as determinações da Igreja. Nas procissões pelas estradas de pedras, à luz de tochas, os cavaleiros das irmandades se trajavam de forma luxuosa, empunhando espadas, à procura de Cristo, enquanto os considerados “desviantes” iam vestidos com roupas de lã e capuzes com chapéus em forma de cone, que deviam ser usados pelos “condenados”. Era uma forma de os penitentes expiarem seus pecados sem revelar publicamente sua identidade.

Hoje, em Goiás, o anonimato sob a roupa de farricoco também é um dos mandamentos entre aqueles que participam da Procissão do Fogaréu – além da devoção desses participantes, claro, que se sentem orgulhosos por expressarem sua fé dessa maneira ano após ano (a vaga para atuar como farricoco na Semana Santa é disputadíssima em Goiás). Uma diferença está nas cores das roupas: enquanto que na Europa as vestes e chapéus são predominantemente em preto, branco, roxo, verde musgo ou vermelho, no Brasil, mais especificamente em Goiás, os farricocos vestem trajes das mais diversas cores.

Fogaréu para crianças

Na Quarta-Feira Santa, horas antes do Fogaréu, ocorre uma espécie de matinê dos farricocos. Trata-se do Fogareuzinho, realizado às 17h, em frente ao Museu das Bandeiras, e destinado às crianças, que se fantasiam de farricocos. Não é difícil de entender o temor provocado nos pequenos por uma celebração noturna como a Procissão do Fogaréu, por conta de toda a estética lutuosa e densa, ao som de tambores. O horário, meia noite, também não é convidativo para que pais levem seus filhos. Assim, a valorização do patrimônio cultural é incentivada na cidade desde a infância, mas em uma procissão infantil feita sob medida para esse público: o percurso não é longo e é descomplicado. As tochas são simbólicas, sem o uso do fogo – apenas duas crianças, mais velhas, conduziram tochas enquanto guiavam o grupo.

Fogareuzinho:

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